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A FILOSOFIA E A FELICIDADE


Francisco de Assis Carvalho Arten
Professor, mestre em Comunicação e Mercado pela
Faculdade Cásper Líbero, Doutor em Comunicação e
Semiótica pela PUC-SP, pesquisador pelo CNPQ.





Os sofistas



Os sofistas eram desprezados pelos filósofos por ensinarem sem critérios racionais, sem a preocupação com a verdade. Apesar da opinião dos filósofos seus ensinamentos eram muito requisitados principalmente pelos jovens de famílias ricas e, portanto, bem remunerados. Porém, é bom repetir, não ensinavam baseados na verdade. E essa era a grande diferença entre os sofistas e os filósofos.

Os filósofos reconheciam a sabedoria pela felicidade. Philosophia, como diziam os gregos, etimologicamente e conceitualmente, significa o amor sabedoria, sabedoria que se reconhece de fato, para quem atinge uma certa qualidade de felicidade, segundo quase a totalidade dos autores que trataram do assunto.



E a sabedoria não no seu aspecto de conhecimento, de cultura ou preparo intelectual, mas sim na capacidade de optar pelo que é bom. A sabedoria que Salomão pede a seu Deus, quando ainda adolescente e tem que tomar decisões importantes já que é conduzido a governar seu povo. Ele se sente inseguro, não sabe governar, não sabe decidir. Pede então a sabedoria, que é a capacidade de discernir entre o bem e o mal com um objetivo específico: construir a felicidade.



Também não se trata aqui de uma felicidade qualquer, conquistada a um preço qualquer, obtida, por exemplo, à custa de drogas, ilusões ou diversões. Nestes casos não se trata da verdadeira felicidade, mas de uma falsa idéia de felicidade, vinda da ilusão, mentira ou esquecimento. A felicidade que os gregos chamavam de sabedoria é a que se obtém em certa relação com a verdade: uma verdadeira felicidade ou uma felicidade verdadeira.



Sabedoria, na expressão de Santo Agostinho, é “a alegria que nasce da verdade”. Ele usa esta expressão para definir a vida verdadeiramente feliz, em oposição as nossas pequenas felicidades, sempre mais ou menos factícias ou ilusória. Santo Agostinho vai usar a expressão beatitude para definir esta felicidade. Spinoza, muitos anos depois, retomará a mesma palavra para definir a felicidade do sábio, a felicidade que não é a recompensa da virtude, mas a própria virtude. O cristão, baseado em Salomão, vai entender a sabedoria como a capacidade de definir por aquilo que é melhor, que pode proporcionar uma vida mais feliz.



Nós, que não somos sábios, conhecemos aparências de felicidade, às vezes alimentadas por droga ou álcool , muitas vezes por ilusões, diversão ou má-fé. Pequenas mentiras, pequenos derivativos, remédios... A sabedoria é outra coisa. A sabedoria seria a felicidade na verdade.

Podemos ser mais ou menos sábios e tentar obter a máxima felicidade no máximo de lucidez. Portanto a felicidade é a meta da filosofia. Filosofar serve para ser feliz, ou melhor, para ser mais feliz. Se já sabemos qual a meta da filosofia restaria saber então qual é a norma. A meta de uma atividade é aquilo a que ela se destina e a norma é aquilo a que ela se submete. Portanto meta e norma são coisas distintas. Vamos ao pensamento de Sponville para entender melhor a diferença: “Não é porque uma idéia me faz feliz que devo pensa-la. Muitas ilusões confortáveis me tornariam mais facilmente feliz do que várias verdades desagradáveis. Se devo pensar uma idéia só pelo fato dela me fazer feliz, então eu estaria me ludibriando. A felicidade é a meta da filosofia mas não sua norma, porque a norma da filosofia é a verdade. Devo então pensar não o que me torna feliz mas o que me parece verdadeiro. E fica a meu encargo tentar encontrar, diante dessa verdade, seja ela triste ou angustiante, o máximo de felicidade possível. A felicidade é a meta; a verdade é o caminho ou a norma..... Se o filósofo puder optar entre uma verdade e uma felicidade, ele só será filósofo, ou será digno de sê-lo, se optar pela verdade. Mais vale uma verdadeira tristeza do que uma falsa alegria.”



Obviamente este é um ponto polêmico: optar entre uma verdadeira tristeza e uma falsa alegria. Muitos vão optar pela falsa alegria. E ai podemos descobrir quem tem uma alma de filósofo e quem não tem. Usando mais uma vez o pensamento de Sponville. “Do meu ponto de vista, só é verdadeiramente filósofo quem prefere uma verdadeira tristeza a uma falsa alegria. Nesse sentido, muitos são filósofos sem ser profissionais da filosofia, e é melhor assim; e alguns são profissionais ou professores de filosofia sem que por isso sejam filósofos, e azar deles. O essencial é não mentir, e antes de mais nada não se mentir. Não se mentir sobre a vida, sobre nós mesmo, sobre a felicidade.”



Portanto, se você optou pela falsa alegria, a escolha é sua e está feita. Resta então recomendar que não perca mais seu tempo com a leitura deste ensaio e, principalmente, com os estudos posteriores e desejo de pesquisa que este livro pretende despertar. Deixe essa função para os filósofos ou para os que tem a alma de filósofos.



Mas se posso ter a ilusão de ser feliz, se posso criar falsos mecanismos, porque devo aprender alguma coisa com os filósofos. Porque a sabedoria é necessária? A bem da verdade precisamos da sabedoria?



Sim, e por um motivo simples: porque somos infelizes, estamos insatisfeitos, temos angústias. Camus dizia: “Os homens morrem, e não são felizes”. Dizem também que o momento mais triste da vida de um homem é quando ele percebe a morte e se dá conta que não viveu. Em outras palavras, que deixou a vida passar, não foi feliz. Tem uma poesia, muito popular, que diz o seguinte: “Quem passou pela vida em brancas nuvens, e em plácido repouso adormeceu, quem não sentiu o frio da desgraça, quem passou pela vida e não sofreu, não foi homem, foi espectro de homem, só passou pela vida, mas não viveu.”

Também aqui aproveito para justificar a razão deste ensaio. Eu era um jovem jornalista, trabalhava numa pequena emissora de rádio em São João da Boa Vista e certa feita fui escalado para trabalhar produzir um programa chamado “É preciso saber viver.” O programa era apresentado por uma padre redentorista, que durante 10 anos havia morado na cidade e depois foi transferido para a cidade de Aparecida. Quando morava em São João este Padre, João Clímaco Cabral, havia revolucionado a cidade. Na sua época psicologia, parapsicologia, eram matérias pouco discutidas, ou tratada com preconceito. Estavam ligadas a loucura e recorrer a este tipo de profissional era sinônimo de fraqueza. Provocava comentários do tipo que a pessoa não estava bem da “cabeça”. O estudo da ética, pelo menos da “velha ética” da questão da felicidade, da vida boa, da sabedoria, havia sido banida das faculdades. Estávamos na década de 70. Então as pessoas sofriam e tinham que sofrer caladas. Não podiam pedir ajuda, não tinham si quer a quem recorrer.



E o padre iniciou um trabalho que mudou esta situação em São João da Boa Vista. Em meio a muita incredulidade e até zombaria formou grupos de estudos inspirados no movimento NA, Neuróticos Anônimos. Dizia que todos são, alguns menos outro mais, neuróticos e que precisamos de ajuda mútua. Imagine a revolução que provocou. As barreiras e preconceito que teve de enfrentar. Mas seu trabalho surtiu efeito. Ele ficou na memória do povo. Dez anos após ter deixado São João da Boa Vista, uma notícia foi publicada numa revista de grande circulação nacional. Uma pesquisa apontava que a cidade tinha um dos maiores índices de suicídios no Brasil. Vários estudos foram iniciados, tentando explicar os prováveis motivos. Junto com elas alguns trabalhos foram iniciados no sentido de diminuir o número destas ocorrências. O padre acabou sendo lembrado por alguém e convidado a colaborar com a cidade, desenvolvendo trabalho de apoio psicológico pelo rádio. De imediato ele aceitou o convite, no entanto, devido à distância, era necessário o acompanhamento de um jornalista. Este profissional deveria produzir o programa de rádio e selecionar os fatos. Chamado para esta função confesso que iniciei o trabalho imaginando tratar-se apenas de mais um trabalho e tão somente. A bem da verdade nem acreditava muito na proposta e só aceitei para não decepcionar os que haviam formulado o convite.

Aos poucos os casos foram chegando até a rádio. Algumas pessoas vinham pessoalmente, outras escreviam, telefonavam. Eu atendia a todas e fui me envolvendo com suas histórias, seus dramas. Quando dei por mim estava totalmente envolvido na produção do programa, atendendo dezenas de casos por semana e conhecendo de perto o quanto as pessoas se sentiam infelizes, angustiadas e pelos motivos mais diversos. O programa durou 5 anos e atendemos centenas de caso. Posteriormente escrevi “ O rádio como Divã Público”, tese que me permitiu o título de mestre em comunicação.

Fiquei profundamente impressionado ao constatar o quanto às pessoas eram infelizes.

Depois fui dar aulas numa Universidade e tive a oportunidade de voltar a conviver com jovens. Surpreso, constatei que mesmo entre eles, havia um desconforto, uma angústia em escala impressionante.

A bem da verdade os jovens, eram os que mais precisavam de orientações para tornar suas vidas mais felizes. A maioria dos que se consideravam felizes percebíamos que estavam acreditando numa falsa felicidade. Acreditavam em sofismas, não eram verdadeiramente felizes. Conseguiam se iludir durante alguns períodos, porém desabavam nos momentos de crises, diante de algum fato inesperado.

Ao ver meus alunos desorientados e carentes de quem os ouvissem. Tentei algumas experiências em sala de aula, nos momentos que a grade curricular permitia, ensinando o que havia aprendido sobre felicidade, estudando ética.

O retorno foi surpreendente. Alguns estudantes me procuraram posteriormente testemunhando que as referências filosóficas em sala de aula despertaram suas curiosidades e eles passaram a pesquisar. Assim, ajudei a formar vários socráticos e principalmente epicuristas. Epicuro, até então um ilustre desconhecido para quase a totalidade destes jovens, virou um ídolo. O filósofo do prazer, da vida boa desperta a princípio a curiosidade e posteriormente a paixão nos jovens principalmente.

O mais fantástico é que alguns jovens diziam de resultados práticos. Que suas vidas haviam mudado após iniciarem a pesquisa sobre ética, sobre a filosofia dos antigos gregos.

A cada testemunho de um destes jovens eu me lembrava da minha época de faculdade. Havia um colega universitário que eu admirava muito. Parecia uma pessoa totalmente feliz. Vivia a vida intensamente: viajava muito, muitas namoradas, sempre solícito a atender os colegas qualquer momento. Não tinha parada, de um canto para outro, conversando com todos. Eu o conhecia somente da faculdade já que sua família morava numa cidade de Minas Gerais, não muito próxima. Eu o via e ficava imaginando o quanto era feliz.

De repente meu colega sumiu da faculdade. Dias depois fui procurado por uma parente. Eu era na época presidente do diretório acadêmico da faculdade. Por sinal, Marmelo, este era o apelido do meu amigo, havia sido o principal “ cabo eleitoral” para que eu ganhasse a eleição de presidente do diretório. Creio dever a ele a vitória, pois era o sujeito mais popular da faculdade e foi de um a um dos colegas pedindo e convencendo a votarem na nossa chapa. Ganhamos as eleições e foi neste período, algumas semanas depois que ele desapareceu.

Já estávamos curiosos em saber o que havia acontecido quando fomos procurado pela parente do Marmelo. Ela precisava da minha ajuda para regularizar a situação do sobrinho junto à faculdade, pagar algumas mensalidades atrasadas e outras providências. Também vinha com a função de dizer a nós que ele não voltaria mais a estudar. Havia cometido suicídio após uma crise de depressão.



Me interessei por sua história e fiquei surpreso em saber que, longe da faculdade, ele era um rapaz muito triste. A família, outrora rica, passou por uma crise econômica quando ele era ainda criança. Tinha em torno de 10 anos. Foi quando o pai cometeu suicídio, num paiol da fazenda onde moravam. Marmelo, foi quem encontrou o corpo do pai e o trauma o perseguiu para o resto da vida. Aos 20 anos ele repete o ato do pai e opta pela morte do que continuar vivendo.



A história do Marmelo me vinha sempre à mente. Como é que pude me enganar tanto com este amigo: imagina-lo feliz, realizado, e confesso, sentir até um pouco de ciúmes. Nem poderia imaginar que ele vivia uma falsa felicidade, que era justamente o mais infeliz de todos nós.



Ainda hoje fico perguntando se poderia ter feito alguma coisa por aquele amigo. Se de alguma forma poderia tê-lo ajudado. Tentava lembrar das conversas que tínhamos, das festas que fomos juntos, das namoradas e aos poucos, recordando, fui percebendo quantos sinais ele havia dado. Quantas vezes o seu olhar, que a princípio parecia ser um olhar de felicidade, na verdade era um pedido de socorro. Aquela energia desenfreada, aquele ânimo constante, a vontade de estar em todos os lugares, de fazer de tudo, de ter muitas namoradas, de viver muitas vidas, na verdade era um grito de socorro. Na época eu não tinha ouvidos suficiente para ouvi-lo. Acho, até hoje, pela admiração que eu percebia que ele sentia por mim, que eu poderia ter evitado a tragédia. Se eu conhecesse os filósofos, se pudéssemos discutir a felicidade, eu teria, com certeza salvo meu amigo.



Depois dele eu não me iludi mais. Passei a desconfiar de toda alegria desenfreada, a tentar ouvir o grito de socorro atrás das falsas manifestações de felicidade.



Tive a oportunidade de apresentar Sócrates, Platão, Aristóteles, Epicuro e tantos outros filósofos para centenas de alunos. Muitos deles vieram agradecer posteriormente e eu devo acreditar que estavam sendo sinceros ao dizerem que prosseguiram a amizade com os filósofos e deles ouviram importantes conselhos que ajudaram a ser mais felizes.



Considero importante filosofar. Só assim alcançaremos verdadeira sabedoria que vai nos permitir ser homens por inteiro. Somos infelizes ou menos felizes do que deveríamos ser e é possível aprender ser mais feliz. Não dá para viver eternamente iludidos. Haverá um momento, nem que seja no último instante de nossa vida, que vamos deparar com a realidade. Melhor filosofar agora, enquanto é tempo, do que olhar para trás, no momento final e, como aquele personagem citado anteriormente, olhar espantado para trás e dizer: Meu Deus, eu não vivi.



Se conseguir que um só dos meus alunos tenha sido um pouco mais feliz, acho que valeu a pena. Por isso resolvi compartilhar, com mais gente possível esta experiência, através deste artigo.



Sempre sonhei, desde quando conheci Epicuro, mais especificamente, de apresentá-lo ao maior número de jovens possíveis. Não com uma linguagem rebuscada da academia. Acho até que esta linguagem precisa ser traduzida. O saber não pode ficar restrito as academias, segundo normas acadêmicas burocráticas e complexas, que na verdade em nada contribui para popularizar a ciência. Sempre defendi que a ciência deve ser compartilhada por todos e não só há poucos privilegiados que tem a oportunidade de decifra-la. Sonhava em escrever sobre os filósofos não como se escreve uma tese de doutorado, mas de uma forma simples, numa linguagem accessível, como se apresenta um amigo para outro.











































A filosofia e a felicidade



Felicidade deveria ser disciplina obrigatória em todas as escolas, merecer uma cátedra em todas as nossas universidades. Talvez você considere a felicidade assunto banal para merecer um tratamento acadêmico, um estudo científico. Porém o estudo da felicidade é dos mais sérios e já preocupou muitos filósofos. Grandes pensadores como Sócrates, Platão, Aristóteles, Epicuro, debruçaram sobre a questão e ensinaram a seus discípulos como agir para alcançar a felicidade.



A felicidade, desde o surgimento da filosofia, foi uma das principais preocupações dos filósofos até, praticamente a segunda metade do século XX. Depois houve um período em que estudar a felicidade ficou relegado a um segundo plano, como se, de repente, deixasse de ser um problema filosófico. E depois, com tantos charlatões propondo as mais mirabolantes estratégias para se obter a felicidade, o tema acabou sofrendo certo preconceito por parte das academias. Assim, não é de estranhar que muita gente rejeite a idéia de que a felicidade deva ser estudada como uma disciplina. É que desconhecem tratar-se de uma velha questão grega e filosófica. Com tamanha intensidade que um dos mais importantes filósofos grego, Epicuro, definia assim o que era a própria filosofia: “uma atividade que, por discursos e raciocínios, nos proporciona uma vida feliz.”.



Quando Epicuro diz que a filosofia é uma atividade, ele dá um novo sentido à palavra. Não se trata de um sistema, de uma contemplação, mas de uma prática.



Ao especificar que esta atividade seja feita por “discursos e raciocínios”, ele a insere como ciência. A verdadeira felicidade se aprende, portanto, desenvolvendo o pensamento, raciocínio e não por visões, bons sentimentos ou estado de êxtase.



Por fim, o objetivo da filosofia é proporcionar “uma vida feliz”. Não apenas o saber, ou o poder.



Um das idéias mais aceitas em toda a tradição filosófica, especialmente na tradição grega, é que se reconhece a sabedoria pela felicidade. Portanto a felicidade é a meta da filosofia. Para que serve filosofar? Serve para ser feliz.



A questão da felicidade é pensada pelos gregos no estudo da ética. Depois, com o passar do tempo, a palavra ganhou outra conotação, confundiu-se com moral, mas, fundamentalmente, assim como a medicina estuda a saúde, o direito a Justiça, a ética estuda a felicidade, a vida boa, que só é possível com a sabedoria.



Quase a totalidade dos autores vai considerar que sábio é aquele que atinge certa qualidade de felicidade. A filosofia nos ajuda a ser felizes, ou, a ser menos infelizes. A felicidade é a meta da filosofia.



Mas quando afinal, o homem começou a estudar a ética? A história do pensamento aparece quando o homem indaga sobre o seu destino e de tudo o que o cerca. Nunca será velha a questão, portanto.



No início o homem explicava o mundo através de crenças e mitos. A concepção grega do homem e do mundo foi progressivamente se racionalizando. O ponto máximo desta evolução vai acontecer na cidade, na polis. Aos poucos o homem vai abandonando suas lendas a procura de explicações racionais. Isso por volta do século V antes da nossa era, numa passagem não assim facilmente delineada.



Sócrates é considerado o fundador da Ética. A partir dele é que surge a concepção de alma como sede da consciência moral e do caráter. A alma, que no cotidiano de cada um é aquela realidade interior que se manifesta mediante palavras e ações, podendo ter conhecimento ou ignorância, bondade ou maldade, e que, por isso, deveria ser o objetivo principal da preocupação e dos cuidados do homem.



Para Sócrates ninguém erra deliberadamente. Só pratica o mal quem ignora o que seja a virtude. Quem tem o verdadeiro conhecimento só pode agir bem. Desta forma conhecimento e virtude tornam-se sinônimos.



O conhecimento que Sócrates enfatiza é o conhecimento de si mesmo, a autoconsciência despertada e mantida em permanente vigília. Bom é o homem auto-construído a partir do seu próprio centro e que age de acordo com as exigências de sua alma-consciência.



Os conceitos universais que Sócrates se preocupou mais em definir são os de bem, de justiça, de virtude e de felicidade: portanto conceitos éticos.



O autor da máxima "Conheça-te a ti mesmo”, tem como noção básica de que o saber fundamental é o saber a respeito do homem. O homem precisa conhecer para agir corretamente. Conheça a ti mesmo, conheça a sua alma, conheça a sua psyche. Sócrates acredita que o homem é a sua alma e é ela quem lhe dá uma personalidade única. É preciso conhecer, conhecer a si mesmo, para agir e agir para ser feliz.



O homem é livre para optar entre o bem e o mal, e racional para conhecer e agir segundo o conhecimento. O homem socrático concebe o bem como felicidade da alma e o bom como útil para a felicidade, e considera a virtude como capacidade radical e última do homem. A virtude é fruto do conhecimento, assim como o vício resulta da ignorância. Se o homem peca é por ignorância, porque não é admissível que, conhecendo o bem e o mal, escolha o mal e não o bem. Os que fazem o mal, ignoram o bem e nem sabem ou percebem que escolheram o mau. Dessa maneira ninguém faz o mal voluntariamente e, como a virtude pode ser pedagogicamente ensinada, a salvação de todos está na educação, através da qual se pode atingir o conhecimento, a bondade e a felicidade.



Portanto, felicidade faz parte dos objetos privilegiados da reflexão filosófica, objeto por sinal dos mais importantes e constantes. Não se trata de questão banal. A felicidade deve ser estudada também por uma razão muito simples e prática. É um assunto que interessa a todo mundo. Pascal dizia: “Todos o homens procuram ser felizes, isso não tem exceção.... É esse o motivo de todas as ações de todos os homens, inclusive dos que vão se enforcar”.



A busca da felicidade é a coisa mais bem distribuída do mundo. Está em todos os homens. “ Não é verdade que nós, homens, desejamos todos ser felizes? “ Pergunta Platão, lá na Grécia antiga. E ele próprio reconhece que a resposta é tão evidente, que a pergunta quase não merece ser feita: “De fato, quem não deseja ser feliz? “







Como nasce a ética



Na Grécia havia os sofistas. Eram assim, espécie de professores, que exercitavam o uso da palavra e ensinavam a arte do discurso. A retórica, saber se expressar bem, era de suma importância para os gregos. Eles haviam inventado a “democracia”, o governo do povo e se reuniam na Agora, para decidir as coisas da cidade. Ali, naquela imensa praça, debatiam durante horas, quase o dia todo, os destinos da cidade. Planejam o que fazer, deliberavam sobre todos os assuntos públicos. Ter uma boa retórica era fundamental para convencer a maioria. Era a garantia de ter projeção, de conseguir impor seus pontos de vista, defender seus interesses, enfim, retórica estava muito próxima a poder.



E os sofistas ensinavam aos jovens a arte da argumentação. Natural que ganhassem muito dinheiro, já que tinham uma função tão importante. Eram todos muito bem de vida, pagos regiamente para ensinar os filhos dos mais abastados a defender seus argumentos, a convencer, usando todos os meios necessários para atingir o este fim. Mesmo mentir, persuadir, enganar. O importante, para os sofistas, era atingir o objetivo.



Os filósofos diferenciavam dos sofistas principalmente por procurar a verdade, só a verdade. Querem explicações racionais sobre o homem e o mundo. Não admitem qualquer tipo de mentira, de engodo.



Sofistas e filósofos são antagônicos e, obviamente, vão se odiar, desprezar uns aos outros. Sofismar virou sinônimo de enganar, encobrir ou deturpar. Os filósofos desprezam os sofistas por considerar que deturpam o saber dos jovens, ensinando errado, com argumentações falsas. Só admitem argumentações racionais.



Antes de prosseguirmos sobre a rivalidade entre sofistas e filósofos vamos tentar entender como foi que os gregos desenvolveram esta vocação para o pensamento racional. Em outras palavras, como foram que inventaram a filosofia. Historiadores discutem ainda hoje quais as condições para que o pensamento racional surgisse e evoluísse tanto na Grécia antiga. Diversas teorias foram elaboradas, nenhuma delas, no entanto, conclusivas. Uma das hipóteses é que a sociedade grega não possuía uma casta sacerdotal, como todas as demais civilizações do seu tempo. A rigor, esta casta monopolizava os livros sagrados e as verdades reveladas. Os sacerdotes, nas outras civilizações dominavam algo fundamental: a escrita. Na Grécia antiga, a escrita não é um segredo dos governantes e escribas, mas é de domínio público, o que possibilita a ampla difusão e discussão das idéias.



A religião do grego é frágil e ineficiente como instrumento de poder. Não satisfaz à necessidade de explicar o mundo. Não existe uma teologia elaborada que forneça explicações coerentes para o mundo. Os deuses gregos são demasiadamente humanos e pouco servem para elaboração de um pensamento mais elaborado. Este quadro veio facilitar o livre desenvolvimento do pensamento. A idéia do rei divino, comum nos demais povos, desaparece logo no início da civilização grega, fazendo com que a política e o governo se tornem cada vez mais uma atividade essencialmente humana.



O ateniense, ao contrário dos demais povos, que ele despreza, não vive sob o mando de um rei. Ele tem a consciência de viver em sociedade. É um cidadão e como tal participa da vida publica da cidade. O destino da “polis” é de responsabilidade comum de todo cidadão, acima dos quais não há nada, a não ser as leis que eles mesmos elaboram. Dessa idéia de que a soberania é da lei, e não de deuses ou rei, e que nasce a democracia grega.



A democracia de Atenas é uma forma até então inédita de organização política e vai resultar num modo sistemático do pensamento. A lei está acima dos indivíduos. Os acontecimentos do mundo, sem serem considerados como realizações do rei e dos deuses, perdem sua base de explicação. Para explicá-los, o homem deve valer-se da “logos, da razão.



Outra circunstância que pode ser considerada fundamental para o desenvolvimento do campo da ética é a invenção do alfabeto, com sua tecnologia revolucionária, equiparada a uma super máquina de comunicar, raciocinando.



Vários conceitos e disciplinas surgiram neste mesmo instante histórico. É notável a harmonia entre os recursos da tecnologia alfabética e as idéias, noções e conceitos de ética.



A ética começa com o destino de ser universal, ou seja, de envolver todos os homens em seu campo. O alfabeto também. A ética nasceu como uma filosofia sobre os problemas morais, presente em todas as atividades humanas. Também em comum o fato da ética nascer num ponto geográfico determinado: a Atenas antiga e avançar progressivamente, sobre todos os territórios vizinhos.



Os conceitos desenvolvidos pelos gregos tem a possibilidade de abranger todos os homens porque eles acreditam numa igualdade básica entre os seres humanos. Aristóteles em sua Ética a Nicômaco, um texto de quadro laudas ao qual se credita a fundação do direito natural, diz: “ Quando for necessário elaborar uma lei atente-se para a natureza das coisas e sua utilidade para os homens, porque, desse modo, sendo a natureza e os homens iguais em toda parte, a nova lei haverá de ser justa e duradoura.”

Assim a ética tem um objetivo final, que é a felicidade. E também é universal, porque destina a ser o parâmetro de conduta para todas as pessoas pelo mundo e tempos afora.

Não só a ética, mas toda a cultura grega parece ter sido fundada a partir da mobilização resultante da recém criada cultura alfabética. A partir do seu apogeu, no século V a.c. estava fundado também o campo da política, com a criação do espaço público, com diferenciação em relação à vida privada, o campo democrático, com a invenção da vontade geral manifestada em assembléias abertas a todos os cidadãos, o campo da técnica e da ciência, com os ofícios, a medicina, a história, o campo das artes com a dramaturgia, a escultura, a musica, o campo da filosofia, com a lógica o campo da ética com os estudos sobre a moral e os costumes.



Num mesmo período são vários fatores, movimentos sincrone ou, como se diz atualmente, sinergéticos, que se auxiliam mutuamente para a criação de novos patamares culturais e de civilização.



É difícil apontar qual destes fatores foi o mais importante para a fundação do campo da ética.





Sócrates é o início





Sócrates é o marco da filosofia a tal ponto que os que vieram antes dele receberam o nome genérico de “pré-socráticos”.Sócrates nada escreveu. Tagarelava muito, mas nada concluía. É também um grande enigma. São muitas as imagens que se fazem dele. Aristófanes descreve-o como um sofista a mais. Xenofante faz dele um pensador convencional. Sua imagem definitiva vem com Platão. Mas, talvez, esta imagem seja mais do próprio Platão do que de seu mestre.

Segundo a acusação que o levaria a morte, ele não passa de um desrespeitador dos deuses e, por isso, um corruptor da juventude.



De tudo o que se falou sobre Sócrates uma verdade é inquestionável: a de que ele era um incansável conversador. Sócrates conversava e tinha muitos amigos. Prezava muito a amizade: “ ao passo que outros gostam de possuir um bom cavalo, um cão, um pássaro, gosto eu e muito mais, de ter bons amigos. Ensino-lhes tudo o que sei do bem, tudo o que os possa ajudar a se fazerem virtuosos. O tesouro que nos legaram os antigos sábios em seus livros, percorro-os de conversa com meus amigos. Se encontramos alguma coisa boa, recolhemo-la e regozijamo-nos de ser úteis uns aos outros.”

Conversar era uma atividade comum na época. Os atenienses, sob o efeito da democracia, fizeram da arte da conversação o principal instrumento de convivência social. Lembra dos sofistas que enriqueciam ensinando os jovens técnicas de conversações e discursos visando a melhor defenderem seus argumentos, já que a persuasão é que valia?

Sócrates também não se distingue pelo que fala, já que seus assuntos são banais, estão na boca do povo, no dia-a-dia de Atenas.

Há, porém, uma diferença entre Sócrates e seus contemporâneos: o modo como ele conversa e como deixa seus interlocutores embaraçados. Os sofistas ensinam a argumentação como convicção sobre qualquer assunto. Sócrates, ao contrário, destrói as certezas construídas com bons argumentos. Não lhe interessam as belas palavras, ele quer conhecer a “essência” das coisas.



Muitas outras são as diferenças entre Sócrates e os sofistas do seu tempo: os sofistas buscam o sucesso e ensinam como consegui-lo. Sócrates busca a verdade e incita seus discípulos a descobri-la. Os sofistas acreditam que para ter sucesso é necessário fazer carreira. Já Sócrates defende a idéia de que para chegar à verdade, é necessário desapegar-se das riquezas, das honras, dos prazeres, entrar no próprio espírito, analisar sinceramente a própria alma, “conhecer a si mesmo”, reconhecer a própria ignorância. Os sofistas se orgulham de saber tudo e de ensinarem. Sócrates acredita que ninguém pode ser mestre dos outros. Ele não é mestre, não ensina a verdade, mas ajuda seus discípulos a descobri-las neles mesmos. Não leciona aos discípulos, mas conversa, discute, guia-os em suas discussões, orienta-os para a descoberta da verdade.



Outra diferença entre os sofistas e Sócrates: enquanto os primeiros acreditam que aprender é coisa facílima, bastando desenvolver o conhecimento da retórica e da arte de governar, Sócrates diz que aprender não é coisa fácil. O conhecimento da verdade chega de forma lenta e progressiva, esclarecendo as próprias idéias e definindo as questões sempre com mais precisão.



No entender de Sócrates, assim como de Platão, os sofistas, estes sim, corrompem a juventude porque nega que se pudesse conhecer o bem e deixa os jovens entregues à ignorância. Sócrates incita seus ouvintes a procurar a verdade e a sabedoria porque somente a verdade e a sabedoria tornam o homem livre e virtuoso.

A verdade consiste na honestidade, na prática da virtude. Não consiste em algo exterior e passageiro, como riqueza, honra, prazeres, como ensinavam os sofistas, mas na consciência reta, no seguir sempre os ditames da razão, enfim, na prática da virtude.

Sócrates sempre viveu em Atenas. Desprezava o trabalho dos sofistas, principalmente pelo fato de receberem para ensinarem. Achava tão importante, tão nobre ensinar, que nada cobrava. Se o fizesse teria sido muito rico pois discípulos não lhe faltariam, já que era amado pelos jovens de Atenas. Por recusar a cobrar de seus discípulos vivia paupérrimo, de favores, ora fazendo suas refeição na casa de um, ora na de outro. Dormindo aqui ou acolá. Amando muitas mulheres e, como era comum e aceito na época, muitos belos rapazes também: “ A mim, os que estão na flor da idade se parecem todos formosos.”



Porém acredita que todas as paixões devem ser moderadas: “ O escravo das próprias paixões não degrada vergonhosamente o corpo e o espírito? Parece-me que todo homem livre deve pedir aos deuses não venha a ter um escravo tal, e todo escravo das próprias paixões encontre bons senhores, do contrário estará perdido.”



Mas quem é, afinal Sócrates? Como pode provocar tantas contradições? Vamos saber o que diz dele Alcebíades, um de seus conterrâneos e que conviveu muito tempo com o filósofo. Após elogiar sua persuasão e eloqüência, a sua grandeza espiritual ele conclui: “ Muitas outras coisas admiráveis teria ainda a dizer a respeito de Sócrates.... Há, porém, uma que não posso omitir por ser realmente maravilhosa: é que ele não é semelhante a ninguém, nem dos antigos nem dos modernos. ... Sócrates fala de coisas tão diferentes que, por mais que se procure, seja entre os modernos, seja entre os antigos, jamais se poderá encontrar alguém que se assemelhe a ele. Se alguém se aproxima para ouvir os discursos de Sócrates, à primeira vista parecer-lhe-ão muito ridículos, envoltos em certos nomes e verbos estranhos. Sempre tem na boca palavras como “ burro de carga, artesão, sapateiro, vendedor de couro”, e parece que diz sempre as mesmas coisas. E quem não está habituado a ouvir tais coisas, ou quem não é dotado de entendimento , não contém o riso. Mas quem compreende o que ouve e reflete bem em sua profundidade, concluirá que, dentre todos os discursos que se fazem, somente estes têm significado e são diviníssimos, contêm muitíssimas imagens de virtudes e encerram muitíssimas e altíssimas coisas, ou melhor, tudo aquilo a que deve mirar quem quiser tornar-se belo e bom.”.



Mas não são todos que admiram Sócrates. Tem crítico, até mesmo dentro de sua casa. A mulher, Xantipa, o acusava de ser um vadio, que nunca trabalhou e não pensava no amanhã. Dava a família mais notoriedade do que pão, não ligava para a mulher e para os filhos. Na visão de Xantipa um vadio imprestável. Xantipa gostava de falar tanto quanto Sócrates e os dois travavam ásperas discussões que Platão preferiu não registrar. Mesmo assim ela o amava e não se conformou ao vê-lo morrer, mesmo após 72 anos.



Outros chegam a zombar do filósofo. Aristófanes, o mais conhecido poeta cômico da época, escreveu uma comédia maldosa sobre Sócrates, que foi representado como o “bufão” de Atenas.



Houve ainda quem desprezasse o modo de ser de Sócrates. O sofista Antifão, ao conhecer Sócrates, verificar o estado de pobreza em que vivia, não entende como alguém poderia viver daquele modo, sem se preocupar em acumular riquezas, ou ter um mínimo de conforto possível. Vai até ele e é franco em dar sua opinião a respeito daquele modo de viver: “ Eu pensava, Sócrates, que os filósofos fossem mais felizes. Você vive de tal modo que não há escrevo que deseje viver sobre seu mando. Se alimenta das comidas mais grosseiras, bebe bebidas sem qualidade. Usa uma vestimenta pobre, um manto velho, que te serve no verão como no inverno. Não tem calçado nem túnica. Não aceita nenhum oferecimento de dinheiro, que poderia te proporcionar uma vida independente e confortável. Dizem que todos os mestres foram seus discípulos a sua semelhança. Então você pode se considerar um professor da miséria.”



Antifão não compreende como aquele homem, que poderia ser rico como ele, ter muitos discípulos a remunerá-lo regiamente, pudesse perder tanto tempo e viver naquele “ estado miserável.” Mas Sócrates tem uma explicação e responde ao sofista: “ Antifão, você faz uma idéia uma triste da minha existência. Preferiria até morrer a viver como eu. Vamos examinar porque considera minha vida tão penosa. Se eu exigisse salário seria obrigado a fazer aquilo que quem me paga quer. Como nada recebo não sou obrigado a falar com quem eu não queira. Achas minha vida miserável porque minha alimentação é menos saborosa, sã ou nutritiva do que a tua? Porque meus alimentos sejam menos difíceis de obter que os teus, os quais são mais raros e mais delicados? Como é que pode avaliar se os manjares que saboreiam despertam melhor paladar do que os meus a mim? O importante é comer com apetite, beber com prazer. Quanto a minha roupa porque nos vestimos? Mudamos a roupa devido ao frio e ao calor. Calçamos sapatos para não ferir os pés e assim ser impedido de andar por onde desejamos. Você me viu alguma vez entocado em casa por causa do frio? Ou impossibilitado de ir onde quisesse por ter os pés feridos? Ignoras que graças a certos exercícios pessoas fracas de corpo se tornam mais forte e os suportam mais facilmente do que aquelas que, nascidas fortes, foram descuidadas? Não percebe que eu preparei meu corpo a resistir a todas as influências, para que não sofra tanto quanto você que não se exercita? Não sou escravo de nada: nem do ventre, do sono, da volúpia... É porque conheço prazeres mais doces, que não me satisfaz só apenas em breves momentos, mas me dão alegrias contínuas...”



A vida de Sócrates é um espanto ainda hoje. Principalmente hoje, com o mundo consumista, voltado aos prazeres, ânsia de viver, o ritmo veloz da vida, impedido uma reflexão mais criteriosa das razões dos nossos comportamentos, do que é realmente importante para ser feliz e o que é ilusão, supérfluo, desnecessário. A ânsia de querer cada vez mais e mais, infinitamente. Pois este círculo não tem fim, quanto mais temos mais queremos. E se aí depositamos nossa perspectiva de felicidade estamos destinado à angústia, pois nunca teremos tudo. É impossível.









Sócrates vai morrer



Precisamos conhecer melhor Sócrates. É preciso debruçar sobre a vida do primeiro dos filósofos para entender o que pregava, como conseguiu atingir a felicidade, porque influenciou a tantos de sua época e os demais que vieram depois dele.



Vamos tentar conhecer um pouco da sua personalidade revivendo seus últimos dias de vida. Sócrates acaba de ser condenado à morte pelas autoridades de Atenas. A sentença foi dada há um mês, aproximadamente. E ele aguarda o cumprimento da sentença numa prisão.

Desde que sentença de morte foi lavrada os discípulos de Sócrates, principalmente Platão, olham aflito o mar, temendo avistar o navio que havia partido para Delos, pois, no dia de sua volta, seria cumprida a sentença de morte.

O navio foi praticar um ritual que se repetiam todos os anos para comemorar a vitória de Teseu, o heróis mitológico sobre o Minotauro, o monstro terrível que habitava o labirinto de Creta e se alimentava de carne humana. Eram dias sagrados para os moradores de Atenas e enquanto o navio não regrasse de sua missão nenhum condenado poderia ser executado.

Assim Sócrates teve tempo de refletir muito sobre a morte. Muitas também foram as oportunidades de fugir. Não encontraria nenhuma dificuldade, nenhuma resistência. Fariam vistas grossas. Mesmo porque, os que haviam condenado Sócrates, esperavam dele justamente essa atitude. No fundo queriam somente vê-lo longe da cidade. Os discípulos tentam de todas as maneiras convencer Sócrates a fugir, em vão. O mestre está disposto a cumprir até o fim a sentença a ele imposta.

Eram muitos os discípulos de Sócrates. Todos jovens, ávidos por desfrutar do seu ensinamento. Viviam em torno do mestre e o ajudaram a criar a filosofia européia. Havia jovens ricos como Platão e Alcibíades, que admiram as sátiras de Sócrates sobre a política e a democracia de Antenas. Havia socialistas como Antístenes, que admiravam a pobreza do mestre e a transformaram numa religião. Havia anarquistas como Aristipo, que sonhava com um mundo em que não houvesse senhores nem escravos, e no qual todos fossem tão livres de preocupações como Sócrates. Era um pequeno bando de pensadores e oradores, que sintetizam todas as linhas de pensamento social que até hoje existem. Todos os problemas que debatiam e questionavam são os mesmos que agitam os jovens. Tinham em comum a certeza de que a vida de um homem só é digna de ele dedicar um tempo de sua existência em busca da sabedoria e do bem viver.

Os jovens de Atenas, principalmente eles, admiravam Sócrates, não só por sua inteligência, mas também porque fora um herói de guerra, com várias ações destemidas. Na guerra contra Esparta, em 43 a C., Sócrates destacou-se pela bravura e resistência física. Salvou a vida de Alcibíades, que depois se tornou político e militar famoso e por ele passou a nutrir um exaltado afeto.

“ Como é que um herói deste poderia ser condenado a morte?” . Questionou muitas vezes Platão.

Sócrates, na verdade, incomodava. Destruía reputações. Ele havia desenvolvido um método que poderia se constrangedor para os que, com ele, dialogassem. De início, adotava a posição de uma pessoa ignorante, que apenas ‘sabe que não sabe’, forçando as pessoas a usarem a razão. A principal técnica era a ironia, que acabava por desmascarar seu interlocutor. Quem acompanhava o diálogo se divertia de ver que toda vaidade caia por terra numa simples conversa com o filósofo. Ele desmascarava toda impostura e no fim sobrava só a verdade de cada um que, convenhamos, antes como até hoje, a verdade pode ser muito constrangedora para quem vive de aparências, de imagens.

Imagine como Anito deve ter odiado Sócrates. Ele, influente político, rico curtidor de pele, líder do partido democrático, viu seu filho se tornar discípulo de Sócrates e, depois, voltar-se contra os deuses de seu pai, e rir daquelas crenças em vários deuses, criados para explicar, na maioria das vezes, fenômenos naturais como tempestades, raios e trovões. Deuses com todos os vícios dos homens, que moravam no alto de um monte, o Olimpo. Para Sócrates esta religião não significava nada. Servia para despertar o temor nos homens, acovarda-los diante de deuses vingativos e poderosos. O pior, justificar o mundo, sem procurar a verdade.



Anito, inconformado com a rebeldia do filho, chocado por ele ter aprendido com Sócrates a desprezar aqueles deuses, e mais o poeta Meleto e ainda um terceiro personagem de pouca importância, levam Sócrates ao Tribunal.



Sócrates era um perigo para aqueles homens orgulhosos. Ia atacando a vaidade, as reputações, parecendo ameaçar as opiniões correntes e valores consagrados. Um encontro com ele era sempre um risco de expor-se ao ridículo. Mas aqueles que passavam por seu método, os que conseguiam superar o orgulho ferido, indo até o fim, acabavam por extrair de si mesmos a resposta lógica aos seus problemas. Era como que passar por um tratamento psicológico. Sentiam a sensação de iluminação, de descoberta, de ter dado á luz a algo de valioso que havia dentro de si, do qual não tinham a mínima consciência.



Houve muitos filósofos antes de Sócrates. Muitos importantes como Tales e Heráclito, Parmênides e Zenom de Eléia, videntes como Pitágoras e Empédocles. Na maior parte, porém, eles estavam preocupados em descobrir as coisas da natureza, da física, das leis e os componentes do mundo: ‘ Isso é muito bom, disse Sócrates, mas existe matéria infinitamente mais digna para os filósofos do que todas essas árvores e pedras, e mesmo, todas essas estrelas: existe a mente do homem. O que é o homem, e o que Lee pode a vir se tornar.’



Assim era Sócrates. Vivia a sondar a alma humana, questionando as convicções absolutas. Adorava lidar com as questões psicológicas e morais. Perguntava mais do que respondia. Deixava a mente de muitos homens mais confusas do que antes.



Os cidadãos mais velhos queriam que Sócrates ensinasse aqueles jovens o respeito aos seus inúmeros deuses, que voltassem a fazer sacrifícios nos templos e bosques sagrados.



Ele porém tinha sua fé: acreditava num só deus e se negava a reverenciar os deuses gregos. Também acreditava de que a morte não iria destruí-lo por completo. Ensinar os jovens a adorar os deus antigos seria um retrocesso no seu modo de pensar: “ Uma orientação perdida e suicida, um progresso para trás, para dentro dos túmulos e não por cima dos túmulos.”



Sócrates sonhava que haveria um sistema de moralidade independente da doutrina religiosa, válido tanto para ateus como para crentes. Um código de moral visando formar indivíduos pacíficos, voluntariosos. Para ser bom, o homem deveria aprender a virtude, a sabedoria. Pois assim perceberia nitidamente seus verdadeiros interesses, aprenderiam a prever o resultado de seus atos, aprenderiam a criticar e controlar seus desejos, e assim atingiriam uma harmonia proposicional e criativa. O homem instruído e sofisticado não precisaria ser controlado por leis, normas religiosas. Ele o seria por si próprio, pois teria claro conhecimento do que era bom ou mau, do que o faria feliz ou infeliz. O homem inteligente, na visão de Sócrates, pode ter os mesmos impulsos violentos e anti-sociais do ignorante, mas o certo é que irá controlá-los melhor. E numa sociedade administrada com inteligência, que devolvesse ao indivíduo, mais do que lhe retirasse em termos de liberdade restrita, havia uma visão clara para garantir a paz e a ordem e a boa vontade.



E assim Sócrates ia conquistando fervorosos discípulos e perigosos inimigos.





A morte de Sócrates





Sócrates não fazia concessões, nem a si próprio. Poderia ter se safado da morte logo após seu julgamento. Como era costume, após proferida a sentença, ele foi convidado a fixar sua pena. Meleto havia pedido a pena de morte. Mas Sócrates poderia propor outra penalidade, como por exemplo o pagamento de uma multa, como chegaram a insistir os amigos. Sócrates havia sido condenado por uma margem de apenas sessenta votos. Qualquer pena moderada que ele propusesse seria acatada por aquela assembléia visivelmente constrangida de condená-lo, pois apesar de todas as excentricidades de Sócrates, era inegável seu valor. Todos lembravam que Sócrates havia sido um personagem importante em restituir a tão prezada democracia de Atenas, quando 30 tiranos assumiram o governo. Ele não deixou se corromper pelos inimigos da democracia e lutou bravamente em defesa do regime democrático.

Sócrates foi julgado no ano de 399 a C. pelo tribunal, chamado de heliastas, formado por cidadãos provenientes das dez tribos que compunham a população de Atenas e escolhidos por meio da tiragem de sorte. Eram ao todo 500 ou 501 membros. Este tribunal era uma das instituições do regime democrático de Antenas. Todos os cidadãos tinham a função legislativa, que se reuniam em assembléia popular e podiam participar da elaboração das leis que regiam a vida e o destino das cidades. Estes cidadãos tinham também a missão de defender, como juízes, as leis que eles mesmos votavam. Cabiam a eles decidir o que era justo ou injusto, bom ou mau para Atenas e seu povo.

O tribunal havia proposto que Sócrates fixasse sua pena.



Mas Sócrates não faz concessões. Propor cumprir uma pena seria aceitar a culpa e isso ele não aceitava. E ele coloca a Assembléia numa situação difícil: propõem que merece como pena nem exílio nem multa: “ Contra a pena de morte, que pena hei de propor em troca? Eu que, negligenciando o de que cuida toda gente – riquezas, negócios, postos militares, tribunas e funções públicas, conchavos e lutas que ocorrem na políticas, coisas em que me considero de fato por demais indecorosas para me imiscuir sem me perder – não me dediquei àquilo a que, se me dedicasse, haveria de ser completamente inútil para vós e para mim? Eu que me entreguei à procura de cada um de vós em particular, a fim de proporcionar-lhe o que declaro o maior dos benefícios, tentando persuadir cada um de vós a cuidar menos do que é seu do que de si próprio, para vir a ser quanto melhor e mais sensato?”



E assim Sócrates propõem como pena seja ele premiado como eram os heróis de Atenas, os vencedores das Olimpíadas, das corridas de cavalos e justifica sua sentença: “ Esses heróis vos dá a impressão da felicidade: eu a felicidade verdadeira.” Assim ele propõem que como os heróis seja sustentado, pelo resto de sua vida, pela governo da cidade. Não deixa outra alternativa para seus juízes: ou a pena de morte ou ser tratado como herói. Era impossível para a assembléia voltar atrás: era a morte ou as impossíveis recompensas. Que então morresse, decidem.



Nos longos dias em que aguardou o retorno do navio de Delos, Sócrates conversou muito com seus discípulos, que o visitavam na prisão. Inevitavelmente meditavam e dialogavam sobre a morte. Não teme a morte que se aproxima e seu argumento é inquestionável: ‘ Se a alma for imortal, a morte é um presente. Se não, a morte é apenas uma longa noite de sono sem sonhos. Portanto nada a dizer, nada a temer.’ Simples, não é? E porque tememos tanto a morte?



Quando o barco retornou de Deles e seus amigos foram contar-lhe visando a prepará-lo para a morte, ele não se perturbou: ‘ Em boa hora se assim o desejarem os deuses, assim seja.’



Mais uma vez os discípulo tentam convence-lo a fugir. O mestre está irredutível: ‘ A única coisa que importa é viver honestamente, sem cometer injustiças, nem mesmo em retribuição a uma injustiça recebida’. Recusa a desobedecer à lei, mesmo injusta, mesmo que o preço fosse a própria vida.



No dia marcado, nos últimos instantes, ele recebeu a mulher Xantipa e seus filhos para as despedidas. Diante deles, ainda se manteve sereno e firme em seu propósito. Talvez achasse que estava na hora de morrer e que nunca teria nova oportunidade de morrer de forma tão proveitosa. Por isso, diante da família e dos amigos que lamentavam a morte eminente, ele os encoraja: ‘ Animai-vos e dizei que estão enterrando apenas o meu corpo.’

Platão estava ali, naquele momento e conta o que ocorreu: ‘Ao proferir aquelas palavras ele se levantou e se dirigiu ao banheiro com Críton, que nos pediu que esperássemos, e esperamos, conversando e pensando...na grandeza de nossa dor. Ele era como um pai do qual estávamos sendo privados, e estamos prestes a passar o resto da vida órfãos. A hora do pôr-do-sol estava próxima, pois já se passara um longo tempo desde que ele entrara no banheiro. Quando saiu, tornou a sentar-se conosco, mas não falou muito. Pouco depois, o carcereiro entrou e se postou perto dele, dizendo: ‘ A ti, Sócrates, que reconheço ser o mais nobre, o mais delicado e o melhor de todos os que já vieram para cá, não irei atribuir os sentimentos de raiva de outros homens, que se enfurecem e praguejam contra mim quando, em obediência às autoridades, lhe mando beber o veneno. De fato, estou certo de que não ficarás zangado comigo, porque, como sabes, são outros e não eu, os culpados disso. E assim eu te saúdo, e peço que suportes sem amargura aquilo que precisa ser feito, sabes qual é a minha missão.’ E caiu em prantos. Sócrates olhou para ele e disse: “ Retribuo tua saudação, e farei como me pede.’ Quando se retirou Sócrates voltou-se para nós e disse: ‘ Como é fascinante este homem; desde que fui preso, ele tem vindo sempre me ver, e agora vede a generosidade com que lamenta minha sorte. Mas devemos fazer o que ele diz, Críton, que tragam a taça, se o veneno estiver preparado, se não estiver, que o encarregado o prepare.’



Críton tenta ganhar um pouco mais de tempo: ‘O sol ainda se encontra no topo das montanhas, e vários condenados têm tomado a bebida tarde da noite. E depois de feita a comunicação de que irão morrer, ainda comem, bebem e se dedicam aos prazeres da carne; não te apreses, pois, ainda há tempo’

Sócrates diz: ‘ Sim, Críton, e esses de quem falas estão certos ao fazerem isso, porque pensam que vão lucrar com a demora. Mas tenho razão ao não faze-lo, porque acho que não iria ganhar coisa alguma por beber veneno um pouco mais tarde; estaria poupando e salvando uma vida que já se acabou, só me caberia rir de mim mesmo por causa disso. Peço-te, pois, que faças o que digo, e não te recuses.’



Críton sai e retorna instantes depois com o carcereiro que traz a taça de veneno. Sócrates pergunta ao carcereiro: ‘ Tu, meu bom amigo, que tens experiência nesses assuntos, irás me dizer como devo fazer’. O homem responde: ‘ Basta caminhar de um lado para outro, até que tuas pernas fiquem pesadas, depois, deita-se, e o veneno agirá.’ E estendeu a taça a Sócrates, que com a maior naturalidade e elegância, sem o menor medo, levando a taça aos lábios, bebeu rápida e decididamente o veneno.



E Platão conta a dor daquele momento: ‘ Até aquele instante, a maioria de nós conseguira controlar a dor, mas agora, vendo-o beber e vendo, também, que ele tomara toda a bebida, não pudemos m ais nos conter; apesar dos meus esforços, lágrimas corriam aos borbotões. Cobri o rosto e chorei por mim mesmo, pois não havia dúvida de que não estava chorando por ele, mas por pensar na calamidade de ter perdido tal companheiro. E não fui o primeiro, pois Críton, quando se vira incapaz de conter as lágrimas, levantara-se e se afastara, e eu o segui, e naquele momento, Apolodoro, que estivera soluçando o tempo todo, prorrompeu num choro alto que nos transformou todos em covardes. Sócrates foi o único a manter a calma: ‘ Que tumulto estranho é esse? Disse ele. Mandei as mulheres embora principalmente para que elas não causassem um tumulto desses, pois ouvi dizer que um homem deve morrer em paz. Acalmai-vos, pois, e tenhais paciência.’



Sócrates ainda teria dito a seus amigos: Tudo deve terminar com palavras de bom augúrio.



Deita-se ao sentir os primeiro efeito da cicuta se encobre. Platão relata este último instante: ‘ Ele estava começando a ficar insensível na virilha, quando descobriu o rosto e disse aquelas que foram suas últimas palavras: “ Críton, eu devo um galo a Asclépio; vais te lembrar de pagar essa dívida? ‘ ‘A dívida será paga, disse Críton, Mais alguma coisa? Não houve resposta aquela pergunta, mas um ou dois minutos depois ouviu-se um movimento, e o criado o descobriu; os olhos estavam parados, e Críton fechou-lhe os olhos e a boca”.









O cenário



Para entender a tragédia de Sócrates, e também a beleza do que ensinou, é preciso entender um pouco do cenário onde se desenrola este drama: a cidade de Atenas. Se você observar o mapa da Europa irá perceber que a Grécia é semelhante a uma mão, estendendo seus dedos curvos sobre o mar Mediterrâneo. Ao sul fica a ilha de Creta, onde, no segundo milênio antes de Cristo, tem início os primórdios da civilização e da cultura. Para o leste, do outro lado do mar Egeu, fica a Ásia menor, naquela época, na era pré-platônica, uma região próspera, com seu comércio e indústria pujantes. A oeste, do outro lado do Jônico, fica a Itália, a Sicília e a Espanha, então prósperas colônias gregas.

A costa do litoral grego é cheio de reentrâncias, elevações, golfos e baías, montanhas e morros. A Grécia ficou assim dividida em fragmentos isolados por essas barreiras naturais de mar e solo; tornando difícil e perigosa as viagens e as comunicações na época. Por isso, cada vale desenvolveu sua vida econômica auto-suficiente, cada qual com seu governo, suas instituições, religiões e cultura. Verdadeiras cidades-estados.

Atenas é uma das maiores destas cidades, a mais oriental. Estrategicamente localizada. Local de passagem para as demais cidades, com um porto admirável, o Pireu. Contava ainda com uma grande frota marítima.

No alto da cidade de Atenas, sob a colina, está a Acrópole. Esta parte da cidade tem sido habitada desde a idade da pedra, devido justamente a sua posição privilegiada, que facilita a defesa contra os inimigos.

A medida que a cidade foi se desenvolvendo, o local passou a ser usado como fortaleza e como um local consagrado aos templos.

Mais abaixo da colina, podemos avistar o antigo teatro de Dionísio. Provavelmente o mais antigo teatro da Europa. Nele foram apresentadas as grandes tragédias de Esquilo, Sófocles e Eurípedes, durante a época em que Sócrates viveu. Foi ali que o cômico Aristófanes satirizou Sócrates.

Na colina havia templos imponentes, tribunais e outros edifícios públicos, estabelecimentos de comércio, uma sala de concertos e até um grande ginásio de esportes.

Quando Sócrates nasceu havia terminado a guerra dos gregos e persas. A vitória dos gregos vai marcar o início da fase áurea da democracia ateniense: o século de Péricles, a idade de ouro de Atenas. Nesta época a cidade é um verdadeiro “canteiro de obras”, com seus enormes templos e edifícios sendo construídos ou reformados.

Sócrates vive o apogeu, mas vai viver também a crise da democracia ateniense. A pós a vitória sobre os Persas, a cidade torna-se uma grande potência, estendendo sua influência por toda a Grécia. Todo esse esplendor fez aumentar a rivalidade com Esparta, culminando em 431 na Guerra do Peloponeso. O conflito se prolonga até 404 a C, quando Atenas se rende definitivamente. A derrota faz com que o regime democrática, que já estava enfraquecido, ceda lugar ao governo dos chamados “trinta tiranos”. Embora restaurada posteriormente, em 403 a C, a democracia ateniense jamais será a mesma. A crise de valores políticos e morais é intensa e a condenação de Sócrates, em 399 a C, é como uma metáfora dessa decadência.

Sócrates era filho de um escultor, Sofronisco, e de uma parteira, Fenareta. Atenas, neste tempo, um ponto de convergência cultura. Um laboratório de experiências políticas.



Era na praça do mercado de Atenas, uma enorme praça quadrangular, que se concentrava a vida cotidiana do povo da cidade.

Um povo não muito numeroso ali transitava diariamente, vestido com trajes multicoloridos, andando por entre aqueles edifícios pintados de dourado e de outras cores radiantes.

Alguns traziam espadas, outros carregavam um jarro na cabeça. Havia ainda aqueles que levavam um rolo de papiro embaixo do braço.

Por ali transitava Sócrates, todos os dias. Para um e outro para conversar. Muito provável que tenha nesta praça segurado pelo braço um escravo que carregava algum jarro na cabeça e feito àquele pobre homem uma pergunta filosófica, para provar que o escravo tinha a mesma razão de um homem livre.



Ali, naquela praça, Sócrates ensinava o homem a se descobrir. E porque ensinava? E porque se recusava a receber para ensinar em troca de seus ensinamentos.?



É o próprio Sócrates quem responde: “ é ordem de Deus. E eu estou convencido de que o melhor que posso fazer por esta cidade é obedecer a ordem de Deus. Na verdade, nestas minhas andanças pelas ruas da cidade, não faço outra coisa a não ser convencer os jovens e velhos, de que eles não devem cuidar só do corpo, nem exclusivamente das riquezas, nem de qualquer outra coisa antes e mais fortemente do que cuidar da alma. De modo que ela se aperfeiçoe sempre, pois não é acúmulo de riquezas que nasce a felicidade, mas do aperfeiçoamento da alma é que nascem as riquezas e tudo o que mais importa ao homem e ao Estado.’



Sócrates acreditavam vivamente ter recebido de Deus a tarefa de ensinar, a tarefa de fazer os homens descobrirem a felicidade, a sua alma, entendendo por alma, o interior de cada um, o seu psíquico: “ conheça-te a ti mesmo.”



E quando Sócrates acredita ter recebido esta missão de Deus? Ele deveria estar com 40 anos e vai até Delfos, consultar o oráculo, uma espécie de sacerdote de muito prestígio naquela época. E o oráculo diz a Sócrates que ele é o homem mais inteligente de Atenas. O filósofo ficou surpreso e transtornado com as palavras do oráculo. Imaginava existirem na cidade muitos outros sábios, mais que ele. Ficou intrigado com esta revelação: afinal o que pretendia o oráculo ao faze-la?

Intrigado Sócrates inicia sua investigação para entender as palavras do oráculo. Começa sua pesquisa conversando com todos os homens que considerava ser sábios e se surpreende. Com cada um deles chegava a uma conclusão: ‘ Mais sábio do que este homem eu sou. É bem provável que nenhum de nós saiba nada de bom, mas ele imagina saber alguma coisa e não sabe. Eu, se não sei, tampouco imagino saber. Por isso sou um nadinha mais sábio que ele, exatamente em não supor que saiba o que não sei.’



E assim, conversando com um e outro, Sócrates vai se decepcionando. Por outro lado as pessoas que se acham sábias, donas das verdades, se vêem nuas e desmoralizadas perante os atenienses. Certamente se sentem desonradas, já que a cidade cultiva os valores da cultura e do saber.

Sócrates vai em frente, convencido de que esta é sua missão: levar as pessoas a reconhecerem a sua própria ignorância a respeito do que antes julgava ter certeza. Está convencido de que, assim, está ajudando estas pessoas a se descobrirem. Como se fosse um médico de almas. Tem como finalidade provocar uma catarse, um tratamento psicológico naquelas pessoas, purificando suas almas, expulsando idéias erradas, ilusões e equívocos que afastam os homens de suas verdades, escondem de si próprios suas emoções e razão de reações e modo de ser.

Depois de limpar o interlocutor, de destruir todas as antigas crenças, inicia o processo de reconstrução. Este interlocutor, agora transformado em discípulo, é levado progressivamente, a tentar elaborar ele mesmo suas próprias idéias. Não mais a repetição automática de fórmulas consagradas ou chavões herdados. Os discípulo deve tentar ser ele mesmo, conceber suas próprias idéias, ou sua alma, sua psicologia.



Nesta fase Sócrates compara sua missão com o de sua mãe. Ela, uma parteira, ajudava as mulheres a darem à luz. Sócrates, que se dizia ele mesmo estéril, pois só sabia que nada sabia, procurava auxiliar as pessoas na concepção das idéias próprias, forma de ir ao encontro de si mesmo, e, como estava escrito no templo de Delfos: ‘ de fazer de si mesmo seu próprio ponto de partida.’



E Sócrates deixa mais uma lição: que o homem não viva de aparências. Que antes tente ser aquilo que realmente deseja aparecer : ‘ Imaginemos um indivíduo que quisesse passar por um bom tocador de flauta sem o ser de fato? Que faria? Não deveria imitar os bons flautistas em tudo o que forma o exterior de sua arte. Primeiro, como os bons artistas, ele possuiria belos instrumentos e cercaria de numerosos acólitos. Que nunca, porém, se metesse a tocar flauta, do contrário, pronto, se cobriria de ridículo e todos iriam perceber que é não somente um mau artista como um impostor.... Não há mais belo caminho para a glória que um homem de bem ser o que realmente deseja parecer.’



Sócrates também se considera um médico, preocupado com a saúde da alma dos seus interlocutores-pacientes, que seria o conhecimento de si mesmo. Conduzindo o indivíduo a pensar como quem se cura: ‘ pensando palavras como quem pensa feridas.’



Além de nada cobrar por seus trabalhos, Sócrates é democrático em sua missão, atendendo a todos: rico e pobres, homens e mulheres, libetos ou escravos.

Para a democracia ateniense, que recusava o direito de cidadania às mulheres, aos estrangeiros e aos escravos, portanto à maioria da população, Sócrates se constituía numa denúncia de seus equívocos. Era um perigo.

Seus jogos de palavras, sua pedagogia, levam a crer no seu menosprezo aos preconceitos sociais da sua época. Ao demonstrar publicamente que um escravo era capaz, afrontava as distâncias sociais e políticas entre os indivíduos. Contrariava os interesses da minoria que detinha o poder. Pensar racionalmente as questões morais implica em denunciar tudo aquilo que aparece como virtude, desmascarando a falsidade. Sócrates põe o dedo na ferida de Atenas, que fingia ser justa, embora cheia de vícios e corrupção.



Os poderosos condenam Sócrates não para puni-los apenas, mas, também, para se defenderem.





Platão



Platão era um belo rapaz. Segundo consta era chamado de Platão devido à largura dos ombros. Era forte, praticava muito esportes e exercícios físicos. Por duas vezes ganhara prêmios nos jogos ístimicos e se distinguiu como soldado.

Difícil um jovem com estas características se tornar um filósofo. Mas encontrou em seu caminho com Sócrates. E este foi um momento decisivo em sua vida. Repetiria, ao longo de sua vida, a importância que o velho “mutuca”, como Sócrates costuma se chamar, havia representado na sua vida: “ Agradeço a Deus por ter nascido grego e não bárbaro, homem livre e não escravo, homem e não mulher; mas, acima de tudo, por ter nascido na era de Sócrates.’ Com o Mutuca tornou-se um apaixonado amante da sabedoria. O esporte que Platão mais gostava, desde de então era o jogo da dialética e sentiu um imenso prazer em praticá-lo. Era uma delícia ver o mestre esvaziando dogmas e deixando os presunçosos de Atenas sem saber o que responder diante de suas perguntas afiadas.

Platão estava com 28 anos quando o mestre morreu e aquele trágico fim de uma vida tranqüilo deixou sua marca em todas as fases do pensamento do discípulo. Passou a nutrir enorme desprezo pela democracia, ódio das massas, que ficou convencido de que deveria combater este regime, substituí-lo por um governo dos mais sábios e melhores. Ele é quem diz: “ Os males não cessarão para os homens antes que a raça dos puros e autênticos filósofos chegue ao poder.”

Era um jovem desencantado: “ A legislação e a moralidade estavam a tal ponto corrompidas que eu, antes cheio de ardor para trabalhar para o bem público, considerando esta situação e vendo que tudo rumava à deriva, acabei por ficar aturdido. Fui então levado a levado a verdadeira filosofia e a proclamar que somente a sua luz se pode reconhecer onde está a justiça na vida pública e na vida privada.”

Desiludido e aconselhado por seus amigos a deixar a cidade, uma vez que passou a ser uma pessoa suspeita aos olhos dos velhos líderes de Atenas, em 399 a C ele parte para uma longa viagem. Sua rota ninguém sabe ao certo. Parece que primeiro foi ao Egito, depois para a Sicília na Itália, onde freqüentou uma escola, ou seita, fundada pelo grande Pitágoras. De cada canto por onde passou foi acumulando experiências. No Egito ficou impressionado ao conhecer o governo, formado por uma classe culta, clerical, que desprezavam Atenas e seu governo dizendo que eles estavam apenas começando, e que portanto não poderiam ser levados a sério, que não tinham tradições. Na Itália, ao conhecer a escola de Pitágoras guardou a lembrança daquele pequeno grupo isolado de homens, que se reuniam para aprender e melhorar seus conhecimentos e governar a cidade. Apesar do poder que possuíam viviam com muita simplicidade.



Durante 12 anos o rico Platão perambulou pelo mundo. Há também historiadores que garante que ele esteve na Judéia, sendo influenciado, durante algum tempo, pela tradição dos profetas quase socialistas. Dizem que ali aprendeu meditações místicas.



O fato é que Platão não esquecia sua cidade e em 387 a C, com quarenta anos de idade, rico em conhecimentos, volta a Atenas. Havia perdido um pouco do entusiasmo da juventude, mas ganhara invejável cultura.



Chegando em sua cidade Platão funda sua escola: a Academia. A fundação desta instituição é um dos acontecimentos mais importantes na história da ciência. É, com efeito, como que a primeira universidade onde os jovens poderão aprender entre outras coisas, matemática e geometria. E este detalhe é que distingue a escola de Platão da de Pitágoras, que tinha um caráter religioso e humanista, ou a de Isócrates, puramente humanista.

A beleza é um valor fundamental na Grécia Clássica. A “ justa medida” definida pelos pitagóricos também se aplica no plano moral. Péricles afirma: “ Amamos o belo com moderação.”

Platão vai fazer deste amor à beleza o impulso inicial da filosofia, que ama a verdade porque é bela.No seu entender, o despertar da alma para o mundo inteligível se faz por um sentimento que é o amor. Inicialmente, o amor é carnal e deseja um belo corpo, mas, aos poucos, passa a desejar a própria beleza e o conhecimento da sua idéia. E o que pode haver de mais belo para o intelecto senão a verdade?



A filosofia é, portanto, o “amor ao saber”, o amor que deseja a verdade.

Mas Platão não se livra do seu amor a política. Escreve A República, onde descreve o amor pela verdade, com o célebre “ mito da caverna”. Segundo o ‘mito’, o mundo sensível é semelhante a uma caverna em que homens se encontram acorrentados de tal modo que só possam olhar para as paredes escuras. Atrás deles há uma fogueira cuja luz projeta na parede sombras escuras, que se constituem na única realidade para esses homens. Mas um deles consegue escapar. Fora da caverna vê a verdadeira e bela realidade. Ansioso volta à caverna para contar aos seus companheiros a sua descoberta. Tenta explicar como é a realidade, mas eles não compreendem. Zombam do que ele fala e, depois, irritam-se com sua insistência em mostrar a realidade e acabam matando.



Estaria Platão fazendo uma metáfora da vida de Sócrates?



Para Platão, o filósofo que chega à verdadeira realidade tem a missão de voltar à caverna, ao mundo sensível dos homens, e tentar mostrar-lhes a realidade, mesmo que seja incompreendido.



A Academia fundada por Platão é, assim como uma espécie de irmandade, em que se discute livremente a respeito dos mais variados temas, como matemática, música, astronomia, além das questões éticas, de como viver uma vida boa, feliz.



Platão morreu em 347 aC. Mas a Academia sobreviveu por muitos séculos, mesmo afastando-se das idéias do seu fundador. Foi fechada em 529 depois de Cristo, por ordem do imperador romano Justiniano.



Platão deixou uma vasta obra. Cerca de trinta Diálogos, em que um dos interlocutores é sempre Sócrates. . Costuma-se dividir estes textos em quatro fases, cada qual correspondendo a um estágio do desenvolvimento do pensamento de Platão.

“Diálogos Socráticos”, procura retratar a personalidade e o pensamento de Sócrates, fazendo sua defesa das acusações que o levaram a morte. Esse é o caso específico de “Defesas de Sócrates”.



Outros textos dessa fase retratam conversações de Sócrates. Os títulos deste textos referem-se ás pessoas em que ele discutia: em Ìon, o assunto é a essência da poesia, em Lísis, fala-se da amizade, Laquês da coragem, Cármide, que era tio de Platão, a moral e a política. Em Eutifron, discute-se a piedade.



Nestes diálogos descreve-se o estilo usual de Sócrates. Os interlocutores são levados a confessar sua ignorância, mas também nada se concluí.









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